Por que os programas midiáticos policiais ou violentos contam com muitos telespectadores?
“Toda a humanidade antiga está cheia
do respeito ‘Ao espectador’, porque este mundo estava feito para os
olhos e não podia conceber-se a felicidade sem espetáculos e sem festas.
Até o grande castigo, repito, era uma festa” (Nietzsche, A genealogia
da moral, p. 68).
Por que o castigo era (na pré-história) e
ainda hoje é uma festa? Porque ele retrata uma vingança, que é
prazerosa. O cérebro humano está sempre predisposto (programado) para
três coisas: sobrevivência (busca por alimentos), procriação (sexo) e
diversão (jogos e o prazer da vingança).
Muita gente, para não dizer a quase
totalidade dos telespectadores, adora ver programas midiáticos policias
(às vezes policialescos) ou violentos não para ver sangue, não para, no
final, se sentir aliviado porque toda aquela desgraça não aconteceu com
ele. Não é nada disso ou não é somente isso.
Por quê, então? Para ver se, no final, o
culpado vai ser devidamente punido e qual vai ser o castigo. A relação
culpa-castigo é muito ancestral. A ideia de que todo culpado ou devedor
que não cumpre sua promessa tem que ser punido vem da pré-história.
Todas as vezes que nos deparamos com um criminoso (ou devedor que não
cumpre a promessa) surge o sentimento de vingança, que leva à
necessidade, antes de tudo psicológica, de aplicação de um castigo. E
que esse castigo seja o mais intenso possível, o mais doloroso que se
possa.
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Por quê? Porque o homem animal tem que gravar na sua memória o castigo (doloroso) para aprender a não fazer o errado, para não ser malvado, para não danificar terceiros. O castigo funciona como instrumento de “domesticação” da besta humana.
Por quê? Porque o homem animal tem que gravar na sua memória o castigo (doloroso) para aprender a não fazer o errado, para não ser malvado, para não danificar terceiros. O castigo funciona como instrumento de “domesticação” da besta humana.
E “como é que se pode imprimir no animal
homem, nesta inteligência de momento, obtusa e turva, nesta encarnação
do esquecimento, algo com caracteres tão fundos, que sempre permaneçam
presentes? Este problema tão antigo, como se pode imaginar, não se
resolveu por meio de respostas suaves; talvez na pré-história do homem
não haja nada mais terrível que a sua mnemotécnica” (Nietzsche, A genealogia da moral, p. 60).
E o que se entende por mnemotécnica?
Nietzsche (p. 60) responde: ‘Imprime-se
algo por meio de fogo para que fique na memória somente o que sempre
dói’, este é um axioma da mais antiga psicologia, e infelizmente o que
mais durou [agregaríamos: e o que mais dura].
É esse duro castigo (como fruto da
vingança), que deve gerar dor, o possível fio condutor que leva muita
gente a seguir os programas midiáticos policiais ou violentos. Para ver
esse castigo (vingança) o telespectador é capaz de esperar horas e horas
(às vezes dias, semanas ou meses). O ato da violência serve para
revolvimento das nossas emoções, como reforço das nossas convicções
morais tendentes à necessidade do castigo. As mídias, como ninguém,
sabem explorar essas reações emotivas ou vingativas, que são atávicas.
Quanto mais justiceiros somos, mais dor queremos?
Nietzsche (p. 60) responde: “Poderíamos
dizer que, onde quer que na vida dos homens e dos povos há solenidade,
gravidade, mistério e cores sombrias, fica um vestígio de espanto que
noutro tempo presidia às transações, aos contratos, às promessas: o
passado, o longínquo, obscuro e cruel passado, ferve em nós quando nos
pomos graves” [vingativos, justiceiros].
A dor, então, faz parte da mnemotécnica?
A resposta é positiva, conforme
Nietzsche (p. 60): “Noutro tempo, quando o homem julgava necessário
criar uma memória, uma recordação, não era sem suplício, sem martírios e
sacrifícios cruentos; os mais espantosos holocaustos e os compromissos
mais horríveis (como o sacrifício do primogênito), as mutilações mais
repugnantes (como a castração), os rituais mais cruéis de todos os
cultos religiosos (porque todas as religiões foram em última análise
sistemas de crueldade), tudo isto tem a sua origem naquele instinto que
descobriu na dor o auxílio mais poderoso da mnemotécnica”.
O único reparo a ser feito nessa
esclarecedora lição de Nietzsche é que tudo isso não é coisa somente de
“outro tempo”: suas ponderações continuam mais atuais que nunca,
sobretudo em sociedades que já nasceram sem conhecer outra forma de
convivência que não fosse a violência, como é o caso da brasileira, que
brotou sob o signo da violência entre os índios ou entre estes e os
europeus que para cá vieram (Weffort, Espada, cobeça e fé, p.
16) (…); sobram nos primeiros séculos exemplos de violência de para a
parte (p.17); “Encontrei a terra toda em guerra”, disse Mem de Sá.
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