Estado Independente do Acre

Como um militar gaúcho no comando de um bando de seringueiros destreinados redefiniu o mapa do Brasil e conquistou a região oeste da Amazônia

Texto Altino Machado, de Rio Branco | 01/11/2013 19h41

Era madrugada de 6 de agosto de 1902. A guarnição boliviana ainda dormia na cidade de Xapuri, que muitas décadas depois, já como cidade brasileira, se tornaria famosa por causa do sindicalista Chico Mendes. Um pequeno grupo de 33 seringueiros brasileiros, armados com rifles, desembarcou de suas canoas. Eles subiram o barranco íngreme do Rio Acre e tomaram posição em pontos estratégicos, divididos em três grupos. Os bolivianos estavam exaustos. Haviam comemorado na véspera a data nacional de seu país, com muito, muito álcool. O militar brasileiro Plácido de Castro, que comandava os seringueiros, seguiu em silêncio até a grande casa de madeira onde funcionava a Intendência do país vizinho. Dios Fuentes, o intendente e maior autoridade do local, despertou de um salto e, pensando tratar-se de um compatriota, ainda com sono, foi avisando:

- Es temprano para la fiesta.

Castro retrucou:

- Não é festa, senhor intendente. É revolução.


Terra sem lei


Tão logo o intendente boliviano se rendeu, os brasileiros recolheram as armas e aprisionaram toda a guarnição. Era o começo da Revolução Acreana. Com a população de Xapuri em festa "muitos confundiram o movimento com o Dia da Independência da Bolívia -, Plácido de Castro anunciou o sucesso da revolta e justificou a ação com o argumento de que em troca de favores financeiros, La Paz pretendia entregar a região ao capital norte-americano e britânico na forma do chamado Bolivian Syndicate. A ideia da empresa era ocupar com soldados e explorar o local por pelo menos 30 anos. O Acre era parte da Bolívia, mas a cada ano, entre o final do século 19 e o início do século 20, aumentava o número de brasileiros em suas terras, especialmente nordestinos, que corriam para lá em busca da riqueza da floresta.

A Bolívia estava disposta a recuperar o território por causa dos lucros que poderia aferir com a borracha, uma das commodities mais desejadas em um mundo que começava a ser desbravado pelo automóvel e pelo uso industrial do látex. O governo brasileiro não pleiteava a região. Portugueses e espanhóis haviam definido que o Acre era boliviano desde 1750, com o Tratado de Madri. Em 1898, o Brasil reconheceu que o território pertencia mesmo à Bolívia. Mas, como era distante, de difícil acesso e em plena Floresta Amazônica, os bolivianos não se dispuseram a colonizar a região. Até aparecer o interesse internacional pela borracha.

O gaúcho Plácido de Castro chegou à Amazônia em 1899, aos 26 anos, depois de viver no Rio de Janeiro e em São Paulo. Três anos depois, seringalistas (os compradores e distribuidores do látex) viram no militar, que havia lutado na Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, a oportunidade para ampliar seu território e seus ganhos. Ofereceram a Castro armas, munição e dinheiro para enfrentar os bolivianos. Ele, imaginando que poderia ficar rico demarcando os latifúndios da seringa (era formado em agrimensura), topou treinar e comandar 2 mil seringueiros, a maioria armada com facões.


Estado soberano

A Revolução Acreana, que começou em 6 de agosto, durou pouco. Terminou em 24 de janeiro de 1903, e as ações mais agudas, decididas rapidamente, facilitaram o desfecho favorável aos brasileiros. De acordo com o especialista em história do Acre Marcos Neves, o principal fator do sucesso da empreitada foi o fato de pela primeira vez se formar um exército organizado na região. "Era composto de seringueiros sem experiência, mas foi suficiente para direcionar corretamente os esforços militares necessários", afirma Neves. "E nesse aspecto a experiência de Castro foi fundamental." As tropas bolivianas eram minúsculas.

Depois da vitória militar, coube a Castro organizar a vida política e administrativa do novíssimo Estado Independente do Acre. Seu decreto número 1, de 26 de janeiro de 1903, mandava aplicar a lei brasileira à justiça civil, criminal e comercial, até que se promulgasse a Constituição do Estado soberano. Considerou válidos todos os títulos de propriedade, definitivos ou provisórios, expedidos pela Bolívia e pelo estado do Amazonas. Definiu o português como língua oficial e adotou o padrão monetário do Brasil. Mas encontrou inimigos em seus antigos aliados. "Rodrigo de Carvalho e Gentil Norberto, os principais articuladores da Revolução Acreana com o governo do Amazonas, tornaram-se seus adversários", afirma o professor Eduardo Carneiro, da Universidade Federal do Acre. "Os dois acusavam Plácido de Castro, entre outros, de ter acumulado riquezas com a revolução." Em carta ao Barão do Rio Branco, Rodrigo de Carvalho, ministro da Fazenda, Justiça e Guerra do Estado Independente, não poupou acusações ao "libertador do Acre" em correspondência ao ministro do Exterior brasileiro. "Plácido de Castro não é honesto; é feroz e sanguinário ", registrou.

Nos meses que seguiram à vitória de Plácido na Revolução Acreana, a diplomacia brasileira agiu rápido. O Barão do Rio Branco convenceu os bolivianos a evitar um conflito armado de consequências imprevisíveis na região.


Primeiro território


No dia 17 de novembro de 1903, o Acre foi finalmente incorporado ao Brasil com a assinatura do Tratado de Petrópolis. O país pagou à Bolívia 2 milhões de libras esterlinas (o equivalente hoje a 640 milhões de reais) e indenizou o poderoso Bolivian Syndicate com 110 mil libras (cerca de 35 milhões de reais) por causa da rescisão de contrato de arrendamento que havia sido firmada com o governo boliviano. Também cedeu terras em Mato Grosso e se comprometeu a construir a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré para escoar a produção boliviana pelo Rio Amazonas.

No princípio de 1904, o Acre se tornou o primeiro Território Federal da história brasileira. Exemplo de um novo sistema político-administrativo, não previsto na Constituição, pelo qual seria gerido diretamente pela Presidência da República, a quem caberia nomear seus governantes e arrecadar os impostos. Transformado em herói pelos moradores locais, Plácido de Castro tornou-se uma ameaça para as novas autoridades brasileiras que passaram a governar o território. O presidente da República, de seu gabinete no Rio de Janeiro, a mais de 4 mil km de distância dos problemas acreanos, nomeava sucessivamente militares, magistrados ou políticos derrotados em eleições para governar o primeiro Território Federal.

Afastado do poder, mas ainda com muito cacife político, Castro virou latifundiário e gerenciava um seringal, até que resolveu voltar à política defendendo a criação de um Estado independente. Em agosto de 1908, a situação era de conflito entre ele e o prefeito de Alto Acre, o coronel Gabino Besouro, que o acusou de planejar uma revolta armada. Nesse cenário, depois de comemorar o quinto aniversário da Revolução Acreana, o militar gaúcho deixou Rio Branco em direção ao seu seringal, o Capatará, com seu irmão, Genesco, dois amigos e um funcionário. No dia 9, o grupo cruzou o Igarapé Distração preocupado com o alerta de Castro, conhecedor da região: "Este é o lugar das emboscadas". Mal atravessaram, foram recebidos por 14 homens armados. O militar levou dois tiros à queima-roupa: um no braço, outro que perfurou seu pulmão esquerdo. Ainda assim, conseguiu esporear o cavalo e fugir. Foi socorrido pelo seringalista João Rola, que apareceu com 20 homens e o levou para sua casa, no seringal Benfica. O local foi atacado à noite e no dia seguinte pelo mesmo grupo da emboscada. Antes de morrer, às 16h do dia 11 de agosto, aos 35 anos, pediu ao irmão que levasse seus ossos do Acre. Segundo Genesco, estas foram suas últimas palavras:

- Direi como aquele general africano: "Esta terra que tão mal pagou a liberdade que lhe dei é indigna de possuí-los". Ah, meus amigos, estão manchadas de lodo e sangue as páginas da história do Acre...

O nome de Plácido de Castro está inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, no Panteão da Liberdade e da Democracia, em Brasília, desde 2002, ao lado, entre outros, de dom Pedro I, Duque de Caxias, Santos Dumont e Chico Mendes que, nascido em Xapuri, não fosse pelo militar gaúcho, seria um famoso boliviano.


Meu reino por dois cavalos


Na Bolívia, a culpa pela perda do Acre para o Brasil é creditada até hoje ao presidente Mariano Melgarejo (1820-1871). Ele negociou com o Brasil o Tratado de Ayacucho, de 1867, sobre os limites entre os dois países ainda durante a Guerra do Paraguai. O governo brasileiro, temeroso de criar uma fronteira hostil no norte, topou renegociar o Tratado de Madri, de 1750. O cônsul brasileiro na Bolívia, Regino Correa, conhecia a paixão de Melgarejo por equinos e o presenteou, antes de começar as negociações com um casal de cavalos brancos. Conta-se que o boliviano ficou tão feliz com o presente que deu de presente ao Brasil "dois dedos " de terra marcados no mapa de seu gabinete, pois se tratava de uma área despovoada. O historiador Marcos Neves afirma que a história é "estranha " e muito pouco conhecida no Brasil. Mas reconhece que, à época, era importante para o país neutralizar qualquer possível aliança entre Bolívia e Paraguai.

"A posteridade o julgará"

A furiosa carta da mãe de Plácido de Castro


Em 1929, o senador J. Pires Ferreira apresentou um projeto de lei que promovia postumamente Plácido de Castro a general. A honraria não convenceu a mãe do militar, Zeferina, de 92 anos, que enviou uma carta ao político. A seguir, os principais trechos.

"Chegando ao meu conhecimento que transita pelo Senado Federal um projeto de lei de autoria de Vossa Excelência dando honras de general ao meu pranteado filho, J. Plácido de Castro, e de coronel a dois dos principais cúmplices no seu assassinato ¿ Gentil Tristão Norberto e Antônio Antunes de Alencar ¿, venho pedir-lhe o grande favor de retirar o nome do meu filho do mesmo projeto.

Em vida, ele nada pediu à sua pátria e nada recebeu além da perseguição, da injúria, da calúnia e da morte por mão das principais autoridades federais; é justo que depois de morto, quando de nada precisa, também nada receba. Os governos já tripudiaram muito sobre o seu nome e sobre a sua memória...

É preciso que a pátria seja coerente: com honrarias póstumas ela não ressuscita a vítima nem lava as máculas do passado. Continue ela a proteger, amparar e distinguir os assassinos, procurando apagar os vestígios da covarde tragédia de 9 de agosto de 1908 e a transformar os criminosos em heróis. Isso é justo: mas que aos 92 anos eu veja o nome do meu filho servir de escada para a ascensão dos seus matadores, isso é demais...

A posteridade julgará meu filho, e é o bastante."

A sequência dos conflitos

Tomada de Xapuri (6 de agosto de 1902)


Início da última e mais sangrenta fase da Revolução Acreana. Xapuri foi tomada pelo exército revolucionário acreano, sem o disparo de nenhum tiro.

1º Combate da Volta da Empresa (18 de setembro)


Tropas de Plácido de Castro são emboscadas e derrotadas na Volta da Empresa (atual Rio Branco) por um pelotão boliviano comandado pelo general Rozendo Rojas.

Combates do Telheiro e do Bom Destino (23 e 24 de setembro)

De Puerto Alonso (atual Porto Acre) partem ataques bolivianos contra os seringais Telheiro e Bom Destino, derrotados pelos revolucionários brasileiros.

2º Combate da Volta da Empresa (5 a 15 de outubro)

Plácido de Castro ataca de novo a Volta da Empresa, que tinha posição estratégica para o domínio do médio Rio Acre. Depois de dez dias de luta toma o povoado.

Combate do Bahia (11 de outubro)

De Xapuri, uma coluna revolucionária parte para o barracão do Igarapé Bahia, mas são atacados e derrotados pelos seringueiros e camponeses bolivianos que formavam a Coluna Porvenir.

Combates de Santa Rosa e Costa Rica (Novembro e dezembro)

Para consolidar o domínio do médio e do alto Acre, Plácido de Castro ataca povoados bolivianos às margens dos rios Abunã e Tahuamano, destruindo-os e vingando o massacre de brasileiros no igarapé Bahia.

Combate de Porto Acre (15 a 24 de janeiro de 1903)

Depois de seis meses de guerra, Plácido de Castro e seus seringueiros vencem o exército regular da Bolívia e tomam o quartel-general em Puerto Alonso. Foi a vitória definitiva da Revolução que tornou o Acre brasileiro.

Saiba mais

Livro


Formação Histórica do Acre
, Leandro Tocantins, Gráfica do Senado Federal, Coleção 500 Anos, 2001

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