1- Abriram mais uma nova religião

Tornou-se comum ouvirmos notícias que não raro envolvem fé e bens, religião e dinheiro, aproximando estas duas categorias estranhas ao verdadeiro cristianismo. Em que pese que as igrejas estejam inseridas no sistema capitalista, a tendência recente parece levar algumas a mudar sua linguagem e objetivos. Alguns homens de igreja sintonizados com a globalização da economia, já falam da igreja como “empresa rentável”, de “marketing da fé”, “investimento em Deus”, etc. Este artigo toma como ponto de partida outro publicado tempo atrás no Jornal do Brasil, “Os novos vendilhões dos templos”, cujos autores e data não me recordo. A Seguir, algumas observações em aberto às críticas.
Primeira, os escândalos e suspeitas de falta de ética envolvendo dinheiro, mais aparecem nas chamadas igrejas neopentencostais do que nas tradicionais denominadas litúrgicas e congregacionais.
Segunda, nas neopentencostais, ficamos sabendo que qualquer pessoa sem uma sólida formação teológica, ou mesmo de passado imoral ou até mesmo gente que veio do mundo do crime, basta que esta diga que foi tocada pelo Altíssimo onde se supõe que o Espírito Santo se manifestou em seu corpo e logo é promovida a “pastor” e os mais ousados fundam de uma nova igreja cujo nome nem sempre é original ou de inspiração elevada. Ou seja, deveria existir enorme distância entre a conversão de um criminoso e a sua ordenação a pastor, mas o que se sabe é a recente inauguração de um caminho de promoção pessoal e funcional quase divino, que, queima etapas em prol de mais um agente do sistema capitalista de montagem de “franquias” de um novo templo.

Por tradição e bom senso, a formação de religiosos sempre foi longa, difícil, ritualística, e com certas provas de sacrifícios. Hoje, não. Em tempos em que a sociedade pós-industrial acena para nos sofisticarmos cada vez mais em novas formações e reciclagens para acompanharmos o acelerado dinamismo do mercado global, há igrejas fundamentalistas caminhando na contramão, promovendo a ignorância e fanatismo, e também inescrupulosamente explorando almas ingênuas nos seus propósitos inconfessos. Tradicionalmente, o campo da fé sempre foi cenário de erros, errancias ou ilusões de pessoas cientificamente ingênuas, mas nos tempos atuais, não devemos confundir esses com os erros imorais praticados por tanto por pessoas inescrupulosas como por uma ou outra estrutura religiosa (na maioria, seitas) que por vezes “deforma” ou autoriza seus pastores a lucros exorbitantes pessoais em nome da fé. Nesse último sentido, ainda há aqueles que distinguem-se pela “moral cínica”, segundo S. Sikek, são pessoas imorais que sabem que estão roubando, mas mesmo assim, ainda vem a público tentar argumentar que frases de efeito hipnotizador ao seu público fanático, que na maioria das vezes, parece acreditar na sua mentira cínica.
Terceira, a sociedade ao responsabilizar o médico, o dentista, o psicólogo, o advogado, quando estes erram, sabe a quem se dirigir para denunciá-los (os Conselhos Regionais das Profissões, a Faculdade que o formou, o MEC que autorizou, o Hospital a que pertence, etc.), mas no caso do pastor que erra ou da igreja que age de modo imoral, a quem as pessoas lesadas vão denunciar? Será que os pastores tendem a pensar que só tem contas a prestar a Deus e nenhuma aos homens? Ora, os policiais têm uma corregedoria para investigar desvios e excessos de autoridade, será que os responsáveis pelas igrejas, sob pena de um dia cair no descrédito social, não deveria também ter uma “Corregedoria Moral de Igrejas e Profissionais da Fé” para investigar, julgar e punir os que pervertem a moral cristã?
Quarta, nas igrejas cristãs tradicionais, predominam a discrição e o comedimento nas campanhas do dízimo e, se pensarmos para além da relação dinheiro X igreja, na relação fé X métodos morais, também, nas tradicionais parece existir certa racionalidade nas interpretações dos textos sagrados, há um esforço em fazer ligação dos textos com os problemas do povo, ou seja, vão além da repetição vazia de conteúdo e cheia de emocionalismos que expulsa uma certa razão da práxis teológica. Nos cultos neopentencostais, a voz dos pastores chega a ser estridente, com gestos teatrais em abundância, com insinuações, às vezes de mau gosto, que curiosamente parece agradar uma parcela inculta da população propensa ao êxtase (a ficar fora de si), e, também, elevar o narcisismo do pastor a showman da fé,(como foi caricaturado no filme “Fé demais não cheira bem”). Pois bem, o poder de persuasão do pastor faz uso abusivo dos testemunhos, das profecias, dos exorcismos e também há venda de bugigangas supostamente “santificadas”. Num determinado momento do culto, na maioria das novas igrejas, o discurso do pastor é construído para exercer uma pressão psicológica para os presentes pagarem o dízimo, não de acordo com o que cada um pode dar, mas de acordo com o que a igreja (que são eles próprios) precisa ou exige. Pode-se até mesmo levantar a hipótese de que essa pressão psicológica, em várias situações, trata-se de “assédio moral” (Hirigoyen, M.-F. Ed., Bertrand Brasil, 2000), na medida em que muitas pessoas silenciosamente sentem-se mais que exploradas, sentem-se indefesas, vitimadas e, se não entregaram suas economias aqueles que pressionam, sentem culpa ou remorso. Tudo é programado segundo o princípio do “vale tudo”, desde que se consiga a encenação de uma pseudo-cura, uma fala que agrade quem está ouvindo. O “vale tudo” neopentencostal vive a dimensão terrena, se interessa pela expansão da igreja não importa se transformada em empresas e franquias; mais importante de tudo é a prosperidade, sinal que Deus está gratificado também quem é esperto em função de uma causa divina.
Quinta observação, apesar delas negarem, estudos apontam que há pontos em comum entre as igrejas cristãs neopentencostais e as religiões afro-brasileiras. Há, em ambas, a crença em “superstições”, “arrebatamentos”, “incorporações” de entidades e de demônios. “A pregação de boa parte do neopentencostalismo está baseada no diabo; de vez em quando Deus aparece” (CF).Ambas, há superstições presentes na venda de óleos santificados, de sal, água para combater doenças, expulsar demônios, a concessão de bênçãos por meio de imposição das mãos sobre dores, carteiras de trabalho, retratos, nomes de pessoas em pedaços de papel, etc. Não é de se estranhar que, os pastores mais capazes de “curas” e “expulsão dos demônios”, antes de se converterem na nova fé passaram pelas igrejas afro-brasileiras.
Até mesmo a Bíblia tem sido usada não para leitura e exegese da palavra de Deus, mas como simples amuleto, um patuá contra mau olhado, encostos, presença de espíritos imundos, etc. Tal prática foi classificada por Pr. Caio Fábio como “mãe de todas as heresias”.
É espantoso reconhecer que as igrejas “dinheiristas” conseguiram caminhar na contramão de Lutero, o “pai do protestantismo” que, nas 95 teses contra as indulgências, pregava contra o comércio de objetos sagrados, fetiches, etc. Novamente, é a “moral cínica” dirigindo o destino da instituição e de seus agentes: “eles sabem que exploram, mesmo assim continuam explorando e justificando o quanto seu gesto é moral!”. Na verdade, esse espírito da fé que poderíamos denominar de “pós-moderno”, está sintonizado com o capitalismo pós-moderno ou pós-industrial: tende a se espalhar rapidamente e a qualquer preço, a exemplo do Mc Donald’s, ora tem um discurso aparentemente sofisticado e moral, mas que esconde sua verdadeira moral cínica.
Assim como vem caindo a credibilidade social dos políticos e governantes, receio que está em marcha no imaginário das pessoas o mesmo processo de queda da confiança nos homens de igreja que profanam o espaço do sagrado, invertendo valores e a moral. Em breve poderemos ter uma onda gigante de frustração coletiva diante das novas seitas. É possível imaginar um povo carente, sem esperança no poder político, nos serviços públicos, jovens sem perspectiva de emprego no futuro, e também esvaziados na fé e nos sonhos. Na Europa, no início do terceiro milênio, a maioria da população está descrente em “Jesus” e “Deus”, conforme reportagem da Veja (jun/2001). Não seria devido a essas contradições e desgastes dos nomes divinos que tantas vezes foram invocados e usados em vão?
Não nos esqueçamos de São Lucas, sobre os vendilhões do templo. Precisamos ir para além de ouvir, escutar; para além de ver, enxergar. Para além de cegamente crer, refletir e melhorar nossas ações.

* RAYMUNDO DE LIMA é Professor do DFE-UEM e membro da BFC-Centro de Psicanálise, de Curitiba. Publicado na REA, nº 02, julho de 2001, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/002/02ray.htm

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