Canudos: Rebeldia rural na República dos Coronéis


No início da Primeira República, no governo de Prudente de Morais, o interior do Nordeste brasileiro foi palco de um dos maiores conflitos sociais envolvendo a luta das populações pobres pela posse da terra. As principais causas deste conflito, que desencadeou a Guerra de Canudos, estão relacionadas às condições sociais e geográficas da região. As características geográficas e as condições sociais do Nordeste brasileiro formavam um conjunto de fatores geradores de um estado de permanente conflito e revolta social. Toda aquela região era composta de latifúndios improdutivos, que eram grandes extensões de terra pertencentes a poucos proprietários os senhores Coronéis.

Os coronéis e a seca

Esses grandes proprietários agrários, também conhecidos como coronéis, mantinham uma enorme massa de sertanejos em condições de absoluta miséria. Como não possuíam terras, os sertanejos eram obrigados a aceitar as péssimas condições de trabalho impostas pelos coronéis. A situação de miséria dessas populações era agravada pelas condições do clima da região. O nordeste brasileiro sofria com as secas, que assolavam toda a região, acabando com as plantações de alimentos, matando as criações de animais e secando os reservatórios de água, todos os anos, a fome e a sede matavam milhares de sertanejos.
As tensões sociais, que a estagnação econômica gerava e a adversidade da natureza - clima e solo - embraveciam, acumularam-se durante três séculos de Colonização, nos sertões da Bahia, como em todo o nordeste do Brasil. De um lado, poucas famílias ricas e poderosas, dominavam uma vastidão de terras, latifúndios improdutivos, e se digladiavam entre si, a disputarem o poder político, por modo a assegurar e expandir suas propriedades. De outro, uma população de caboclos, sertanejos, na sua maioria índios mestiçados com brancos ou negros - mamelucos e cafuzos - que perderam ou jamais possuíram alguma terra e nada tinham, nem mesmo a possibilidade de vender sua força de trabalho e a esperança de alcançar uma vida melhor. A alguns não restava senão o descaminho do cangaço, fora da lei, se lei havia, e bandoleiros se tornavam.
Outros, para sobreviverem, passavam a servir como jagunços, capangas dos senhores de terra, os coronéis, assim denominados porque recebia do governo imperial a patente da Guarda Nacional, com a faculdade de organizar batalhões, quando necessário, para defender a ordem e o Estado.
Em tais condições de atraso social e político, aquela massa de oprimidos, pobres e miseráveis, quase completamente isolada dos centros urbanos do litoral, devido à carência de transportes e de outros meios de comunicação, só encontrava esperança na religião, através da fé no “Bom Jesus”, que pelos menos lhe abriria as portas do céu, a perspectiva de salvação e recompensa por tantos sofrimentos. A religião, naqueles sertões do Nordeste, podia ser como no conceito de Karl Marx, a “expressão da miséria real”. Podia ser o “suspiro da criatura aflita”, a “alma de um mundo desalmado” e até mesmo o “Opium des Volks”. Mas o cristianismo, naquelas circunstâncias históricas, constituía o máximo de consciência possível, como utopia, e desvelava um sentido revolucionário, na medida em que o nível de atraso econômico, social e cultural do sertão fazia-o regredir à sua pureza original, como na Palestina, ao tempo do domínio de Roma.
O ambiente de religiosidade e misticismo favorecia o surgimento de beatos e messias, cujas ações reais, modeladas por uma ética de provação, tendiam a chocar-se contra a estrutura de classes da sociedade, tal como aconteceu com Thomas Münzer, que tentou organizar, na Alemanha do século XVI, uma completa comunidade de bens e igualdade total, a antecipar sobre a terra o reino de Deus.
Por volta de 1877, ano da grande seca no Nordeste, Antônio Vicente Mendes Maciel, que como Antônio Conselheiro se notabilizaria, já peregrinava pelos sertões, a fazer e a arrastar fiéis por onde passava. Segundo Euclides da Cunha, em toda a região, cidade ou povoado não havia onde ele aparecido não tivesse, e sua entrada, “seguido pela multidão contrita, em silêncio, alentando imagens, cruzes e bandeiras do Divino, era solene e impressionante.

Sua popularidade aumentava assim cada vez mais e a abolição da escravatura, em 1888, concorreu para aumentar-lhe as hostes, com negros libertos, sem destino e sem ocupação, em meio de grave crise econômica, que solapava as bases de sustentação do governo imperial.
O governo imperial efetivamente se debilitara ao persistir na mesma política de valorização do câmbio e de restrição ao crédito, em que o contínuo endividamento externo completava a permanente escassez interna de meios de pagamento. Essa política não atendia às necessidades de circulação monetária do capitalismo emergente, para a expansão de suas forças produtivas, impulsionadas tanto pela acumulação da cafeicultura de São Paulo, à base, já em grande parte, do trabalho assalariado, quanto pelo crescimento do parque industrial do Rio de Janeiro, sob o impacto da concentração comercial, que a crise financeira dos anos 70, após a guerra contra o Paraguai, estimulara. A abolição da escravatura, em uma tentativa de salvar a monarquia, lançara à liberdade quase um milhão de escravos, no valor de 2 contos de réis cada um, e agravou ainda mais a situação, dado que à maior parte dos senhores de terra, sobretudo do Rio de Janeiro e do Nordeste, faltava o meio circulante para alugar a força de trabalho de que necessitavam para a produção das fazendas e dos engenhos de açúcar.
O desconforto e a insatisfação destarte aumentaram, a generalizar-se entre os membros da nobreza e em todas as regiões do país. No Recôncavo da Bahia, a baronesa de Alenquer, proprietária de vários engenhos de açúcar, observou, um ano após a abolição da escravatura, que “quanto ao nosso governo, e a miséria que estamos passando, é uma calamidade! Deus nos acuda! Só vejo todos se queixarem, há uma falta de dinheiro nunca vista.

O sentido político de Canudos

A pregação de Antônio Conselheiro, cujo início datava dos anos 70, não visava a impor uma reforma agrária nem encapava intuito político, apesar de que ele confessadamente fosse monarquista. Euclides da Cunha salientou, porém, que Antônio Conselheiro “viu a república com maus olhos e pregou coerente, a rebeldia contra as novas leis”43. Certa vez, na cidade de Bom Conselho, reuniu o povo, induzindo-o a acender uma fogueira e queimar, em meio de gritos e estrepitar de foguetes, as tábuas onde o prefeito, decretada a autonomia do município, afixara os editais para a cobrança de impostos44. Os trinta soldados da força de polícia despachada para o prender atacaram-no em Masseté, localidade erma nas cercanias das serras do Ovó, mas se depararam com a resistência dos seus seguidores e foram desbaratadas, “precipitando-se na fuga, de que fora o primeiro a dar o exemplo o próprio comandante”45. Mais tarde, ao frei João Evangelista, que o Arcebispado da Bahia enviara com a missão de o fazer retornar com sua gente ao seio da Igreja e obedecer às leis e às autoridades do país, Antônio Conselheiro explicou que, no tempo da Monarquia se deixara prender porque reconhecia o governo.
E acrescentou: “Hoje não, porque não reconheço a República”46. Pouco antes do início da guerra, ao aumentar a pressão para que ele desarmasse e dispersasse sua gente, assentada pacificamente em Canudos, Antônio Conselheiro então se recusou a fazê-lo, uma vez mais, e não só se manifestou contra a legitimidade da República como defendeu a sucessão monárquica, declarando: “É evidente que a república permanece sobre um princípio falso e dele não se pode tirar conseqüência legítima; sustentar o contrário seria absurdo, espantoso e singularíssimo, porque ainda que ela trouxesse o bem para o país, por si só é má porque vai de encontro à vontade divina... Quem não sabe que o digno príncipe, D. Pedro III, tem o poder legitimamente constituído por Deus para governar o Brasil? Quem não sabe que o seu digno avô, o senhor D. Pedro II, de saudosa memória, não obstante ser vítima de uma traição a ponto de ser lançado fora do seu governo, recebendo tão pesado golpe, que prevalece seu direito e, conseqüentemente, só sua real família tem poder para governar o Brasil? Negar estas verdades seria o mesmo que dizer que a aurora não veio descobrir um novo dia”47.
Seu pensamento, bastante simplório, pautava-se pela doutrina legitimista do direito divino dos soberanos, com o que divergia do próprio princípio da Constituição de 1824, que investira D. Pedro I na condição de imperador “por unânime aclamação da Nação” (Art. 153) e sobre o qual a monarquia brasileira se consolidara. Era, entretanto, coerente com a religiosidade do movimento por ele liderado.
De qualquer forma, conquanto pregasse contra a República, na qual não reconhecia legitimidade, e assumisse, desde 1893, uma “feição combatente inteiramente nova”, segundo a expressão de Euclides da Cunha48, Antônio Conselheiro jamais pretendera promover uma rebelião camponesa para derrubar. Seu inconformismo configurou-se, sobretudo, com a decisão de fundar, naquele ano, Monte Belo, em Canudos, e lá organizar uma sociedade igualitária, de acordo com os padrões do comunismo de consumo, adotados no cristianismo original, apartando-se da heresia, como a república anti-cristã se lhe afigurava.
Antônio Conselheiro já fundara outro arraial, o de Bom Jesus, mas o de Monte Belo assustou as classes dominantes na região, ao avultar-se, com a sua insólita organização social, atraindo milhares de camponeses do Nordeste. Conforme Cícero Dantas Martins, barão de Jeremoabo, observou, alguns lugares daquela comarca e de outras circunvizinhanças, e até do Estado de Sergipe, ficaram desabitados, tal o aluvião de famílias, a subir para o Canudos, após colocar à venda nas feiras extraordinária quantidade de gado cavalar, vacum, caprino, etc., além de outros objetos, “por preço de nonada, como terrenos, casas, etc., a fim de apurar algum dinheiro e ir reparti-lo com o Conselheiro”49.
A dimensão, que a cada dia o seu movimento alcançava, tornou-se, durante a legislatura de 1894, objeto de debate no Congresso Estadual da Bahia, onde um deputado chamou a atenção dos poderes públicos para aquela “parte dos sertões perturbada pelo indivíduo Antônio Conselheiro”50. E um simples mal-entendido ou, o que mais provável foi, uma intencional deturpação do seu propósito, serviu como pretexto para que sobre ele e o povoado de Monte Belo a repressão se desencadeasse, a crise política da República, no desvão da qual a facção mais retrógrada e reacionária do Exército, não conformada com um “casaca” na presidência, conspirava ainda para instituir a ditadura militar.
 Referências

Guerra de Canudos. Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_de_Canudos> acesso 30 set 2011.

Canudos. Disponível em: http://www.historiadobrasil.net/guerracanudos/ acesso em 29 set 2011.

Antônio Conselheiro. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Antônio_Conselheiro acesso em 29 set 2011.

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