História na prisão

Apesar dos obstáculos que o professor pode enfrentar dentro de uma penitenciária, existem maneiras de despertar o interesse dos alunos detentos

André Luis Marques Roseira


Na primeira vez que entrei na sala de aula, fui recebido pelos alunos como um estrangeiro. “Alemão” é como os detentos chamam os que atravessam os portões das penitenciárias sem terem sido condenados. É este o caso dos professores que atuam, como eu, nas dez escolas inseridas no sistema penitenciário do estado, voltadas nominalmente para a “ressocialização” dos alunos através do processo educacional, numa realidade muito diferente do ensino público fora daqueles muros.

Para começar, a aceitação do professor ali acontece em plebiscitos diários – isto é, sua autoridade precisa ser negociada a cada jornada de trabalho. Ser professor, para os presidiários, significa ocupar o lugar de alguém que pôde estudar. A pessoa que tem acesso aos bens culturais, privilégio para poucos na nossa sociedade, é chamada de “playboy”, marcando-se assim uma clara oposição entre duas realidades. De um lado, temos o professor que valoriza a cultura formal-letrada. De outro, alunos que valorizam os conhecimentos mais práticos da vida.

Se a pedagogia contemporânea tem discutido com freqüência a adequação do ensino à realidade do aluno, tal debate se evidencia quando os alunos são presidiários. A idéia é tentar imputar a esses indivíduos um passado histórico adequado, homogêneo, do “todos como um”. Minha experiência como professor de História na Escola Estadual de Ensino Supletivo Rubem Braga – localizada na Penitenciária Milton Dias Moreira, no Complexo Frei Caneca – me permitiu verificar, na prática, a inadequação do ensino da História como instrumento “civilizatório”, tal como ele é apresentado na Reorientação Curricular proposta pelo governo fluminense.
Artigos recentes – após o caminho apontado pelo historiador Hayden White – têm criticado as “grandes narrativas” feitas sob um enfoque iluminista, que tendem a projetar uma forma canônica de apresentar a história, privilegiando a suposta superioridade da história ocidental. O livro Reorientação Curricular do Estado diz que o professor de História deve se preocupar com “os desafios do ensino numa sociedade democrática, inclusiva, cosmopolita e pós-moderna”, privilegiando uma visão da sociedade que não necessariamente corresponde àquela do alunos. Logo mais à frente o manual se refere aos temas e conteúdos que devem ser observados e cumpridos com “exatidão” pelo profissional da área. O livro não leva em conta que um ensino deslocado da realidade dos estudantes certamente provocará o repúdio dos mesmos. Como exigir que um aluno excluído dos sonhos de liberdade, igualdade e fraternidade, então prometidos pela Revolução Francesa, reconheça um ideário que não vive, mas que lhe dizem ter sido conquistado desde o século XVIII? Como exigir dessas pessoas o reconhecimento, por exemplo, dos ideais artísticos renascentistas, se elas nunca tiveram acesso aos bens culturais?

Se os alunos não se adaptam a esse tipo de ensino, soma-se a isso, da parte deles, um forte sentimento pessimista diante da História do Brasil. É a perfeita antítese ao otimismo do “brasileiro que não desiste nunca”, propagado pelo governo Lula. As imagens do Brasil nos planos político, econômico e social são respectivamente, segundo esses alunos: um “mundo das mentiras/lorotas/das falsas promessas”, “mundo da roubalheira” e “mundo que só é retratado nos programas políticos”. Quanto ao plano econômico, pelo excessivo uso do economês, os alunos procuram livrar-se da “dor” do não entendimento, com um recurso típico: “Há dois métodos para me livrar da dor. Um é curar a ferida. Mas se a cura é demasiado difícil ou incerta, há um outro método. Posso me livrar da ferida cortando a perna fora”.

A resistência às aulas tradicionais poderia gerar uma impossibilidade do ofício do professor de História. Mas não é o que acontece quando se trabalha com temas que fazem os alunos se sentirem membros constitutivos de uma História humana. Algumas experiências possibilitaram essa interlocução. É possível ilustrar uma experiência positiva, narrando, por exemplo, os efeitos da apresentação em sala de aula, no início desse ano, do documentário "Nós que aqui estamos por vós esperamos", de Marcelo Masagão. Através da exibição do filme, pude estabelecer a ponte necessária entre dois “mundos” praticamente incomunicáveis: o da formalidade do professor e o do específico de alunos presidiários. Neste documentário, onde ganha relevo a importância de homens comuns na construção histórica, os alunos tiveram a oportunidade de se verem como passageiros dos “vagões da história”. No fim da exibição, as lágrimas de um dos alunos me fizeram refletir sobre a revelação da sensibilidade num ambiente visto por grande parte da sociedade como prioritariamente desumano.

Outra experiência bem-sucedida foi a discussão de capítulos do livro "Rota 66 – a história da polícia que mata", do jornalista Caco Barcellos, quando, mais do que nunca, a relação narrador/narrado completou-se. Dessa forma, criou-se uma leitura conjunta da experiência presidiária, uma história sobre eles, que eles contam de e para si mesmos, e que nos permite uma aproximação com a realidade de tantas cidades brasileiras. O tema da Primeira Guerra Mundial, aparentemente corriqueiro, deu também origem a uma das mais interessantes aulas de história que vivenciei na penitenciária. “O que fez aqueles homens irem tão motivados à guerra?”, foi a pergunta que marcou o ponto de partida das discussões. Outros tantos assuntos começaram a aparecer e ligar esses alunos ao tema principal, como o terrorismo – representado no episódio do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando –, o nacionalismo e o processo de criação de identidades.

Dessa forma, começamos a pensar os elementos que forjam a identidade de um grupo. Com muita delicadeza, propus que eles refletissem acerca dos símbolos que os uniam como grupo/facção e o que estabelecia as fronteiras entre eles e outras facções. Talvez eles não pudessem, naquele momento, explicar a motivação de homens em um passado alheio, mas puderam, certamente, compreender as motivações daqueles personagens através de suas próprias experiências. Nesses momentos singulares, o professor passa a explicar menos e a compartilhar uma carga de sentimentos coletivos que não estão presentes em livros de História.

Outra experiência que vale ser compartilhada foi a da exibição do filme "O pianista", de Roman Polanski, sobre a traumática experiência do Holocausto. Fiz a inversão da proposta usual: primeiramente discuti o Holocausto, para depois exibir o filme. Durante as discussões sobre o tema, os alunos tenderam a comparar suas mazelas com as dos judeus, arrefecendo seu sofrimento diante da dor dos outros. O filme provocou, dessa maneira, uma guinada: fez com que as dores dos judeus passassem a ser apropriadas como “nossas dores”. Por um momento, os alunos sentiram-se como os personagens daquele filme. Um deles, na redação proposta como avaliação do filme e das aulas, escreveu: “A história do Holocausto foi a história deles e também é a nossa”.

André Luis Marques Roseira é professor de História na Escola Estadual de Ensino Supletivo Rubem Braga e mestrando em História na PUC-Rio.

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